Autor: Nordestinados a Ler

<strong>Chá inventado</strong>
Literatura

Chá inventado

Alexandre Lucas A panela velha virou um jarro, plantei boldo para dias de dor de barriga. Confesso que esqueço de colocar água, mas ele é resistente: cresce rápido. Na escola usamos chá de boldo para todas as insatisfações: dor de cabeça, cólica, ansiedade, gases, inchaço e até raiva.  Acredito que o boldo não seja milagroso, talvez ele seja uma espécie de mentira e crença para disfarçar o problema real. A gente inventa que ele serve para muita coisa e as pessoas acreditam. Quando não conseguimos explicar a realidade, a partir da ciência, inventamos outras formas para entender a nossa relação com o mundo. A gente inventa histórias e vai dando esqueleto e musculatura para as ideias.  A gente precisa acreditar em alguma coisa.  Tem gente que acredita em rochas mágicas, n...
Jarid Arraes: uma peixinha-sereia
Literatura

Jarid Arraes: uma peixinha-sereia

Luciana Bessa Há quem diga que filha de peixinho, peixinho é. Eu sempre me pergunto se não seria certo dizer: filho de peixinho é o que ele quiser. Sendo Jarid Arraes filha de Hamurabi e neta de Abraão Batista, conhecidos por seus trabalhos com cordéis e xilogravuras, que caminhos ela poderia percorrer? Muitas são as possibilidades, mas Jarid resolveu palmilhar, não a estrada pedregosa de Minas Gerais, essa ficou para o poeta Carlos Drummond de Andrade, mas a de Juazeiro do Norte. Aqui, nasceu em 12 de fevereiro de 1991, mas, atualmente, mora em São Paulo e, embora tenha enfrentado inúmeros desafios e escutados muitos “nãos”, publicou As lendas de Dandara (2016), Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis (2017), Um buraco com meu nome (2018), Redemoinho em dia quente (2019) e, ma...
Sobra algo
Literatura

Sobra algo

Alexandre Lucas Acabei de tomar banho e os pensamentos continuam sujos. Sobram dois dedos de vinho, mas já estou embriagada sem beber. Abro a boca, é sono mesmo, quero resistir, mas me faltam forças. A vizinha diz que, se a noite for boa, a manhã será maravilhosa, faz sentido, mas não é uma regra. A outra vizinha diz que o dia de amanhã a Deus pertence, deve ser por isso que o dia de hoje está esse inferno, porque só amanhã será de Deus. Hoje estou flertando com as minhas interrogações. Nada mais. Sem paciência para jogos de cartas, sempre perco. Os dois dedos de vinho estão me esperando, um compromisso que não tenho. Hoje é sábado, exatamente sábado, dia em que o prazer bate pernas e a noite não dorme. Eu, já não faço parte desta paisagem, estou intocada dentro dos meus medos e c...
Ainda não estou em casa
Literatura

Ainda não estou em casa

Alexandre Lucas Teus olhos são mar noturno. Tem horas que dar vontade de viajar sobre asas de borboletas, mas tem horas de querer fugir. A noite é misteriosa, esconde os caminhos. O mar não tem caminhos. Teus olhos ficam no meio do caminho. Sei que faz calor, mas os ventos não conspiram e o mar está distante. Se pelo menos pudesse alugar a felicidade, ela seria uma casa grande, cor clara, ventilada, teria um canto para cada coisa, teria espaço para andar e correr e, em cada lugarzinho, um convite para amar... devo acordar.Era um sonho. Os sonhos são maiores que o universo. O universo a gente tenta dominar, já os sonhos são mais difíceis. Na redação tento colocar as pautas em dia. A notícia não pode passar do tempo, se não é como pão de um mês, fica duro e mofado. Os teus olhos est...
<strong>Santo quebrado</strong>
Literatura

Santo quebrado

Alexandre Lucas O espelho grande cabia o seu corpo. Nua, desembaraçava o cabelo, depois de uma guerra de prazer. Encarava o espelho como se estivesse pagando a conta de um jantar ruim e caro. Olho no olho, alguns desvios para o copo com sobras quentes de vinho. Sua cabeça doía como se tivesse um sino badalando. A louça ainda dormia na pia.O café para fazer, amargo e forte. As cinzas de incenso estavam espalhadas na penteadeira. A estátua quebrada na beira cama, Santo Agostinho, tinha se partido com suas contradições. Os lençóis molhados exalavam cheiro forte e um clima abafado. Ela nua penteando os cabelos. A casa vazia como o sexo da noite anterior.A língua seca de quem passou a noite revirando os olhos, um pouco de água. A idade já não permitia tantas travessias. Aos pentear os cabelo...
<strong>A poesia que ficou na geladeira</strong>
Literatura

A poesia que ficou na geladeira

Alexandre Lucas Meu amor, o chocolate se venceu, a poesia deixei descuidada na varanda e ela ficou paralítica. Estou cansada, tenho roupas para lavar, mas me faltam sabão e coragem.  Você lembra que já participei do teu sorriso? Faz tempo, hoje, consigo no máximo ser sua bolacha de distração, aquela que se come de vez em quando.  Deixei algumas cartas não enviadas: estão no baú que me serviu de cama. Por favor, entregue aos destinatários. Tem uma que é para você: guarde para as horas de luta.  Sempre escrevi como um manifesto de amor, mesmo quando a escrita estava molhada de sangue e firme de raiva.  Outro dia, estava lembrando quando abrimos as portas das gaiolas e os pássaros puderam desaparecer. Foi libertador. Imagina se tivéssemos asas, poderíamos até voar...
Ventos
Literatura

Ventos

Alexandre Lucas A porta está aberta, nenhum compromisso para hoje. Posso sair e virar a noite abrindo as pernas e assobiando, rindo alto e mapeando estradas desconhecidas. A lua está cheia, mas poderia estar do formato que quisesse. Posso gritar e me embriagar, chegar depois do sol. As pernas conseguem andar o bastante, nem preciso tomar café, sem sono algum. Hoje, o som das ruas está mais agradável. Desliguei o jazz que sempre acalma, mas infelizmente o repertório estava como uma sopa sem verdura e sal, intolerável. Estou pronto: banhado, cheiro na validade e roupa limpa. Na carteira, tenho o suficiente para esquecer o meu nome e o caminho de casa. Parece-me que os lugares estão fechados. Vejo pela fresta um redemoinho e uma criança rodopiando sem conseguir se segurar....
Mulheres que escrevem
Literatura

Mulheres que escrevem

Luciana Bessa Ser quem eu sou, mulher-nordestina, me impulsionou a criar o Blog Literário Nordestinados a Ler, ferramenta que tem o propósito de criar e fomentar a literatura produzida na região Nordeste, marcada pelas desigualdades sociais e econômicas, mas com um histórico de lutas e talentos, especialmente concebida pelas mulheres, que durante décadas, foram negados o acesso à leitura e à escrita.Ser mulher em uma sociedade patriarcal não é fácil. Ser mulher-escritora, então, nem se fala. A história das mulheres, dentro ou fora do universo literário, foi/é marcado pela exclusão, pela violência e pelo silenciamento. Sem voz, tiveram que assistir, a deturpação de si.A naturalização do papel secundário da mulher, o servilismo e o fato de não frequentarem os bancos escolares e acadêmicos...
Julgada
Literatura

Julgada

Alexandre Lucas O corpo estava desenhado de dor, camuflado entre terra e mato, a pele parecia brotar do chão, a tatuagem dava nome: cova rasa. Era o suficiente sabe disso para revirar os olhos, coçar a cabeça e remoer o estômago. Para alguns isso não era satisfatório, se fazia necessário panfletar a brutalidade, como se estivesse espalhando flores. Não era cinema com violência, mas a violência sem dramaturgia. A mão na cabeça já não pedia consciência. Os gritos desesperados para parar aumentavam a dosagem de selvageria. A faca fez vala como se fizesse rede de pesca. Na arena romana, a festa se fazia da morte dos bichos. Na arena de hoje, os bichos estão salvos, com algumas exceções. O tribunal da morte dava a sua sentença acompanhado de aplausos e filmagens. A vida é real, a...
<strong>Eu não sou flor</strong>
Literatura

Eu não sou flor

Por Alexandre Lucas* Floresça! Era o nome bordado no bastidor, ao lado da imagem de uma mulher segurando um coração exposto e um ramalhete de flores. Uma manta cobria seus cabelos. Olhos claros, olhar sério desses que impõem medo, mesmo sendo pintura.Tentava escrever um monte de palavras para não passar despercebida. Aquela mulher do quadro não parava de me olhar, como se tivesse vida. A palavra floresça parecia se juntar aquele quadro, apesar de não fazerem parte da mesma composição. Mesmo estando aparentemente tudo parado, tinha certeza de que estávamos em movimento e transformação: eu, o quadro e a palavra. Floresça mais parecia uma receita pronta, vendida nos consultórios de felicidade. Hoje é comum vender frases como remédios para curar toda e qualquer enfermidade. Basta crer...