Autor: Nordestinados a Ler

Foram apenas os cachos
Literatura

Foram apenas os cachos

Alexandre Lucas* Raspa tudo. A máquina derrubou os cachos, as lágrimas quase caíram. Nada mudou.  Os dilemas ainda permanecem os mesmos. Os cabelos crescem, espero que os problemas diminuam. Manhã de domingo, as crianças brincam entre as pedras e a água. Observo, enquanto mastigo algumas sementes de girassóis e aprecio a simetria das margaridas. Sinto-me com a cabeça mais leve. Falta-me cachos, sou a mesma, talvez disfarçada.  Os cachos são só aparência. As crianças continuam brincando:  algumas têm cachos, outras sorrisos. Tento reencontrar alguma coisa, talvez tenha perdido alguma criança que restava dentro de mim. Hora de partir. Aqui é gostoso, ando só. Vejo as árvores se espreguiçando, mas estão presas não podem me seguir. Outra hora volto, talvez já tenha c...
Penso, logo tenho liberdade
Literatura

Penso, logo tenho liberdade

Luciana Bessa O dicionário me ensina diferentes palavras para o turbilhão de sentimentos que teimam em existir dentro de mim.  O calendário me mostra como posso desfrutar melhor “um dos deuses mais lindos” e mais temperamentais, o tempo. Neste último acabo por descobrir datas comemorativas que, confesso, me passam despercebidas, como foi o Dia da Liberdade de Pensamento, 14 de julho, em que ocorreu a queda da Bastilha, marco da Revolução Francesa, em 1789. Aos que esqueceram e/ou ainda não tiveram essa aula de História: a Bastilha era uma prisão, símbolo do Antigo Regime francês. Quando o povo, oprimido até não suportar mais, tomou-a, ele proferiu seu grito de liberdade. Base da existência humana – “Penso, logo existo” – nos diria René Descartes em [seu] O Discurso do Méto...
Tem um redemoinho na barriga
Literatura

Tem um redemoinho na barriga

Alexandre Lucas* Perdida. Toquei fogo no mapa e a barriga tem um redemoinho. Não passa ninguém, apenas o silêncio transita. Isso foi ontem, não morri, mas continuo desencontrada. Juntei todos os comprimidos, inclusive os de tarja preta, coloquei o copo de lado, água bem geladinha. Fui brincar de jogo de botão com os remédios. Distrair-me. Não apareceu nenhuma bússola. Os comprimidos, joguei na privada e fiquei observando-os boiando até se dissolverem. Muito tempo olhando. A amiga mandou uma oração, preferia um chocolate. Mesmo assim fui ler a bendita reza: assustadora. Ensinava a ser submissa. Rasguei, esse não deve ser o caminho da salvação. Desconsertada, caminho. Talvez hoje, deixe o feijão queimar. Releia as antigas anotações, refaça a agenda do mês e no meio do caminho sai...
O fruto continua proibido
Literatura

O fruto continua proibido

Alexandre Lucas* Está proibido manifestar o desejo. Se tranque em infinitos segredos. Se tranque. Murcha me recolhi, na sala do desespero, sem nenhum gole de água. Tenho que negar tudo, ser aprendiz de mentirosa, já que não quero ser aprendiz de feiticeira.  Sou bicha, animalesca por natureza, humana pelas circunstâncias. Posta no mundo, cheia de gente e coisas, em movimento e, eu rodando, mesmo sentadinha na cadeira só observando. Tirar-me o desejo é negar minha existência. É assaltar sonhos, bombardear a verdade, é louvar a hipocrisia. Calamos e matamos todos os dias os nossos suspiros. Enterramos sem cerimônias os nossos tumultos. Amo, mesmo desconhecendo essa engenharia sempre inacabada e sem manual, faltosa de parafusos e comandadas por deuses e demônios. Ensinaram-me desde d...
Aqui nunca foi rosa
Literatura

Aqui nunca foi rosa

Alexandre Lucas* Ainda não decidi a roupa de hoje. Estou de férias e a rotina da folga não foi organizada. Acordei cedo como de costume, mas tomei café mais tarde. Fui cuidar das roseiras que estão todas cheias de botão.  Rosas amarelas, brancas, vermelhas serão paridas. Adoro a delicadeza das pétalas, a maciez da textura, a simetria. Dizem que elas guardam a simbologia da nossa intimidade. Rosas lembram vaginas. Tenho grandes dúvidas. Se tivesse uma rosa ao invés de uma vagina, ela seria intocável para não desfazer a sua fragilidade. Andaria lentamente para não decompor o seu arranjo. Elas têm vida curta. Rosas não suportariam tanta selvageria, tanto vai-e-vem, rodopio, esfregamento, o sugar ou a suavidade de uma massagem assoprada. Minha vagina é resistência. Sagrado e r...
Água nunca é de sempre
Literatura

Água nunca é de sempre

Alexandre Lucas* Sementes de girassol, amendoins, passas, alguns goles de água.  Vento frio. Porta entreaberta: vou fotografando a rua: a mulher que anda em círculos. O homem que caminha com a escada nas costas. Os pombos que disputam a ração dos gatos. O botão que esconde a cor da rosa. O carro embrulhado de lençóis no meio da rua, deve ser para proteger a pintura. Os pássaros, mas não consigo fotografá-los, só escuto os seus cantos. Ainda continuo com a mesma calcinha de ontem, os cabelos lembram Einstein, blusa de propaganda, ainda nem tomei café. Dei alguns pulos, suei um pouco. Ainda não sei o que fazer. Escrevo. Escuto as conversas acaloradas sobre futebol e faço careta, enquanto, penso no riso da traficante, ontem à noite. Estico os braços, digo ai, coço os seios. Prec...
Marisa Monte – “Ainda bem que encontrei você”
Literatura

Marisa Monte – “Ainda bem que encontrei você”

Luciana Bessa A Música, assim como a Literatura, tem o poder de invocar lembranças, despertar sensações várias - alegria, melancolia, prazer – e fazer refletir sobre a condição humana. Muitas são minhas paixões. Uma delas é a Música. Talvez seja sua habilidade de me acalmar, ou mesmo afastar o turbilhão de pensamentos sobre os infindáveis compromissos do dia a dia. Pode ser ainda o fato de a Música e a Literatura manterem uma relação íntima e complementar, embora não haja equivalência musical para o discurso verbal. Minha relação com a música-poesia da cantora e compositora Marisa Monte remonta a década de noventa, quando era estudante do curso de Letras. Após minhas leituras obrigatórias do sábado à tarde, escutar a voz de Marisa era sinônimo de liberdade e de bem-estar. Nasci...
A despedida da flor
Literatura

A despedida da flor

Francinilda Santiago Lopes Numa tarde de sexta-feira duas amigas marcaram de tomar um café e no meio da conversa Ana faz um convite para amiga Daiane: irem comemorar seu aniversário em um clube de passeio com piscina, porque a comemoração no ano anterior tinha sido em sua casa onde elas comeram, beberam e dançaram músicas dos anos 80 e 90. Ana ficou surpresa ao ouvir a revelação da amiga Daiane naquele dia, ela disse: vou te confessar como foi difícil estar no teu aniversario no ano passado, eu estava devastada com o coração em frangalho, porém fiz com que ninguém percebesse, disse Daiane a amiga. A minha companheira de trinta anos tinha acabado de falecer, eu a levei para hospital e depois a minha flor foi para a UTI. Não demorou muito e a equipe médica veio com a notícia do falecim...
Um louco no espetáculo
Literatura

Um louco no espetáculo

Alexandre Lucas* Nos bastidores, a língua vira lâmina. Sexta-feira, semana intensa, programação vasta: vasculho a mais calma e de preferência com poucas pessoas. Cansada das multidões. Todos os convites recusados na mais discreta mentira. Saio só. Assisto ao espetáculo sobre homem matador. Roubava, estuprava, matava. Ninguém queria ser o homem narrado no espetáculo. Assassino confesso, daqueles que fazem o estrago e contam sorrindo. Assisti atentamente. Jovem grita da plateia, tenta interagir com o ator. A plateia desconsidera a doença mental do rapaz, insiste no seu silêncio, mas diz acreditar nos direitos humanos. Dói. O jovem tem o seu direito restringido de ser louco. Os normais transgridem a realidade. O espetáculo não era daqueles monótonos em que se assiste ...
O som do rugido da onça
Literatura

O som do rugido da onça

Luciana Bessa Sempre me questiono o que faz um livro premiado ou não. O som do rugido da onça, da escritora pernambucana Micheliny Verunschk ganhou, em 2022, o mais tradicional prêmio literário do Brasil concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CDL). No caso da obra em questão, tenho duas suposições para tamanha premiação. A primeira diz respeito ao fato de a autora vestir sua prosa de um lirismo sensível capaz de atravessar qualquer coração empedernido. A narrativa lírica é aquela em que as palavras, embebidas pelo ritmo, sonoridade e cadência, dançam diante dos olhos dos leitores. A segunda suposição tem a ver com o fato de Micheliny Verunschk valer-se da união entre discursos - literário, histórico e antropológico - para desfazer a versão dos exploradores como “salvadores da ...